Faz um bom tempo que venho
pensando no porquê de o transporte coletivo ser sinônimo de
transporte público. Existe algo de especial na atividade de levar pessoas
de um ponto a outro que torna válido impedir a concorrência e proibir
empreender no setor? Existe algo que justifique a não existência de uma
variabilidade de serviço conforme o interesse de cada passageiro em uma cidade?
O transporte coletivo público no Brasil é reconhecidamente ineficiente, e
é a camada da população mais pobre, que mais depende deste serviço, que sai
prejudicada.
Como uma
empresa poderia ingressar no mercado ou inovar tecnologicamente em transporte
público? Muito além do básico que falta nas linhas brasileiras — como um
sistema de identificação de rotas tanto online como no próprio ônibus (em Porto
Alegre, é preciso saber o que códigos como T1 e T5 significam como rota) —,
saber que ônibus passa em cada parada já seria um início e um grande
diferencial comparativo para um novo entrante. Enquanto dependemos da
eficiência do poder público, o grupo portoalegrense Shoot the
Shit elaborou uma iniciativa colaborativa para descobrir
quais são os ônibus que param em cada lugar, ainda sofrendo uma reação inicial
da EPTC de encarar a atitude como vandalismo.
Uma outra
estratégia empreendedorial seria identificar quais trajetos estão saturados de
passageiros, tentando lucrar por meio da criação de um ônibus a mais para
atender os passageiros que não estão sendo atendidos na margem. Ou então
fazer exatamente o contrário: tentar descobrir a demanda para rotas ainda
inexistentes a partir de pesquisas de mercado. Ainda, uma forma muito
mais simples seria fazer o que muitas escolas adotam para o transporte de seus
alunos, porém, neste caso, concentrando-se em estabelecimentos de usos
variados. Uma empresa poderia abordar edifícios comerciais de um determinado
bairro e perguntar de qual bairro os trabalhadores estão vindo, e se eles
estariam dispostos a contratar um serviço para este trecho, sem paradas.
Se apenas esta última alternativa fosse viável e viesse a acontecer de
forma generalizada pela cidade, muitas pessoas já poderiam se desfazer de seus
carros, já que, independentemente do lugar em que elas trabalham, é muito
possível que exista um transporte específico para a rota de que cada um
precisa.
Outro exemplo, extremamente
atual, seria o aplicativo para iPhone ou Android chamado
Sidecar, recentemente publicado no TechCrunch, que permite conectar
passageiros indo para o mesmo lugar, transformando praticamente qualquer automóvel
em um pequeno veículo de transporte coletivo, no qual a tarifa é paga
voluntariamente pelo usuário, com a quantia sendo decidida a partir do valor
médio pago pelos usuários anteriores. Uma invenção genial, mas que
tiraria o monopólio municipal que existe hoje sobre o transporte coletivo,
sendo exatamente esta regulação o que impede o aplicativo de entrar no mercado.
Assim,
levei meus questionamentos sobre a restrição do empreendedorismo ao transporte
coletivo a Manuela D'Ávila e a José Serra, candidatos às prefeituras de Porto
Alegre e São Paulo, respectivamente, no evento realizado pelo INSPER sobre cidades,
que teve como convidado (infelizmente à distância) o urbanista Edward Glaeser.
Manuela
me respondeu que estranhava minha pergunta, pois ela considera o transporte
coletivo, no caso de Porto Alegre, privado, sendo empresas privadas que operam
cada linha. Estranhei mais ainda a resposta, já que sabemos que é quase
impossível conseguir uma licença e todas as empresas que atuam em Porto Alegre
são concessões estatais altamente reguladas, que devem ainda seguir o padrão da
Carris, a empresa pública de transporte. Tentei continuar a conversa
perguntando pelo Twitter "como posso inovar
em transporte coletivo com licenças limitadas, cargas, tarifas e rotas
controladas?", mas infelizmente não tive resposta.
Já Serra
argumentou que o transporte, assim como alguns outros serviços públicos
infraestruturais, não podem sofrer o risco de parar, já que muitas pessoas
dependem dele. Porém, qualquer cidadão sabe que estes serviços públicos
são mais suscetíveis a greves do que empresas privadas, causando o caos no
transporte que vimos algumas semanas antes do evento. Se houvesse um mercado
aberto, com várias empresas competindo entre si e com facilidade de entrada,
não haveria motivos para que esse serviço parasse. Estes são os mesmos
motivos pelos quais é difícil imaginar a falta de comida no mercado de
alimentos, como citado no recente artigo de Leandro
Narloch na Folha, o qual teve minha singela colaboração.
A
experiência histórica mais recente de um sistema desmonopolizado de transporte
coletivo é a do Chile, que permitiu a livre concorrência e o livre
estabelecimento de preços por empresas neste setor a partir do final da década
de 1970 até o início dos anos 1990, quando o setor foi novamente regulamentado.
Após ouvir uma série de podcasts, ler artigos e ouvir depoimentos (ver
referências abaixo) sobre esta experiência, parece-me serem três as principais
críticas em relação ao sistema, as quais comento a seguir.
A
primeira e principal crítica de uma possível desregulamentação é semelhante à
crítica comum feita a qualquer setor que corre este risco: a criação de um
cartel e o aumento das tarifas em um sistema gerido por empresas privadas,
impedindo que os mais pobres usufruam deste direito. Segundo Gómez-Lobo, as
tarifas médias de Santiago praticamente dobraram de valor no período de 1979 a
1990, mas a análise vê o problema apenas na superfície.
O valor
não leva em consideração os subsídios, recursos coletados por meio de impostos,
utilizados para manter esta tarifa baixa. Segundo o economista Mike Munger,
o sistema de ônibus de Santiago, que hoje é regulado, tem prejuízo de Ch$600
milhões anuais, e embora eu não tenha os números de antes de 1979, é de se
esperar que haja um grande subsídio estatal para manter as tarifas baixas.
Em Porto
Alegre, a empresa municipal Carris teve
prejuízo anual de R$1,8 milhão devido ao preço das tarifas, e na
capital paulistana o repasse de subsídios às empresas de transporte coletivo
(sem contar o metrô), chega a quase R$800 milhões para
manter a tarifa a R$3,00. Isto significa, basicamente, que são
os cidadãos que não utilizam o transporte coletivo que estão pagando por quem
usa. Há quem defenda esta política como sendo "social", já que,
por ser um transporte mais barato, ele normalmente é utilizado por uma camada
mais pobre da população. Porém, o que acontece é que muitos dos usuários são de
classe média e até mesmo alta, que acabam recebendo subsídios de quem ganha
menos, mas que também paga impostos.
Adicionalmente,
a meu ver, transporte coletivo não deveria ser algo limitado à camada mais
pobre da população, podendo existir alternativas mais baratas ou mais caras
dependendo da importância e do valor que cada cidadão atribui para seu
transporte pessoal. Por fim, vejo um grande problema ao tentar corrigir
um problema de desigualdade social e renda distorcendo toda a rede de
transporte público. Se o problema é a falta de renda, então seria no
mínimo mais racional se estes mesmos subsídios fossem repassados aos cidadãos
mais pobres para que estes pudessem escolher eles mesmos o tipo de transporte
que gostariam de utilizar.
De forma
geral, sabemos que, se as barreiras políticas à entrada no mercado fossem
realmente eliminadas, a pressão dos concorrentes tenderia a levar a um aumento
da eficiência e à diminuição dos preços para tentar atrair mais consumidores
para este mercado. No que mais, diferenças em capacidade, flexibilidade
de rotas, qualidade e idade dos veículos, densidade de passageiros por ônibus
e, ainda, a eficiência de gestão de cada empresa influenciariam no preço de
cada trajeto, criando uma ampla gama de escolhas em transporte coletivo.
O segundo
problema citado da experiência chilena, a qual inclusive ouvi pela primeira vez
do Secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre Luís Afonso Senna, é a
concorrência que existia entre motoristas de ônibus para pegar passageiros em
uma determinada parada. J á que as paradas continuaram sendo públicas e os
motoristas são recompensados por eficiência, os relatos dos moradores de
Santiago são que os motoristas de ônibus agiam como Ben-Hur na corrida de
bigas, correndo para buscar o grupo de passageiros que estava à espera.
Isto causou um aumento no número de acidentes e uma percepção pública
muito negativa do sistema, onde a busca pelo lucro das empresas aumentava o
número de mortes no trânsito.
Entretanto,
o problema surgia porque eram empresas privadas atuando em uma plataforma
pública — paradas que pertenciam a todas as empresas em conjunto —, gerando
então esta distorção no mercado. Estes incentivos perversos foram
analisados por Daniel Klein em um artigo
falando sobre "curb rights", ou "direitos de meio-fio",
argumentando que um modo simples de resolver este problema seria estabelecendo
paradas específicas para cada empresa ou grupo de empresas, terminando com
qualquer tipo de concorrência para a mesma parada e prezando pela segurança no
trânsito.
Fisicamente, o formato destas
paradas poderia ser muito parecido com as paradas de BRT implementadas em
Curitiba e Bogotá. Já que os passageiros à espera do ônibus em uma
determinada parada já compraram sua passagem, esta poderia ser exclusivamente
de uma empresa ou de um consórcio de empresas, acabando com qualquer tipo de
corrida por passageiros e, ao mesmo tempo, praticamente implementando um BRT
privadamente, sem onerar os cofres públicos.
A última
crítica em relação aos ônibus de livre mercado chilenos foi que, para reduzir
custos, as empresas deixaram de renovar e realizar manutenção nas suas frotas,
gerando um grande número de veículos velhos na cidade, inseguros e poluentes.
Meu primeiro comentário a esta crítica seria que, para automóveis, o
incentivo brasileiro é justamente o contrário: carros com mais de 10, 15 ou 20
anos, são isentos de IPVA, dependendo da região. O motivo é
social, já que normalmente os proprietários destes veículos são cidadãos
pobres. Repetindo o que comentei anteriormente, não me parece eficiente
incentivar o trânsito de carros menos seguros e criar um problema de poluição
urbana se a intenção é fazer redistribuição de renda: os assuntos devem ser
resolvidos separadamente.
Por outro
lado, se uma grande camada da população que anda de transporte coletivo possui
menos recursos financeiros ou se importa menos com a qualidade dos ônibus para
se deslocar, é natural que surjam, em um mercado livre, veículos para atender a
estes consumidores. Qualquer tipo de regulação municipal com o intuito de
proibir agentes privados de emitir gases tóxicos ou de ameaçar os demais com
veículos caindo aos pedaços recairia novamente no problema de as ruas serem
propriedade pública. Fossem as ruas privadas, não haveria motivo para
tais conflitos. No entanto, acredito que tais regulações não
estabeleceriam padrões proibitivos aos mais pobres e nem seriam restritas a
apenas carros ou ônibus, já que os danos são os mesmos. Enfim, não
acredito que este argumento por si só seja motivo suficiente para inviabilizar
a inovação no transporte coletivo.
Mesmo
assim, transporte coletivo segue sendo sinônimo de transporte público,
restringindo os incentivos à inovação trazidos pela livre concorrência e pela
possibilidade de falência, inexistente quando se pode cobrir qualquer
ineficiência com mais impostos e mais subsídios. Quando o serviço é ruim,
quando a rota não existe, quando os veículos são poluentes, quando o preço é
considerado alto ou as informações sobre rotas são inexistentes, resta ao
cidadão reclamar ao poder público — sempre com poucas chances de sucesso, sem a
possibilidade de trocar de fornecedor nem de empreender algo melhor.
Anthony
Ling é formado
em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS,
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